Críticos vêem os filmes que relacionam infecção e morte como retrocesso; governo catarinense diz que intenção é chocar
São Paulo, sábado, 19 de junho de 2004
AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL
Primeiro o porta-retrato da filha, abraçada a amigas, depois o do filho, com a moto ao fundo, em seguida a foto do casal. A voz do pai vai repartindo a herança: “Para você, Juliana, deixo o carro e minha estimada coleção de discos. Para você, Henrique, deixo minha moto e meus livros. Para minha amada esposa Judite, deixo a casa, o apartamento da praia e o vírus da Aids.”
O espólio do personagem que vai morrer de Aids e que faz parte de uma campanha de prevenção do governo do Estado de Santa Catarina vem provocando protestos de ONGs, além de ter ocasionado uma carta da Coordenação Nacional de DST/Aids.
“Nenhuma campanha tem o direito de cassar os sonhos e projetos de felicidade de pessoas infectadas pelo HIV”, diz Sandro Sardá, ativista em Aids da Fundação para o Controle da Aids (Faça), de Florianópolis (SC).
O filme está sendo encarado como um retrocesso a anos anteriores a 1993, quando campanhas tentavam fazer prevenção dizendo às pessoas que elas iriam morrer de Aids.
Hoje, o eixo das campanhas está centrado na solidariedade e na vida. O objetivo é reduzir o preconceito e fazer com que os pacientes queiram se aproximar da rede de saúde.
“O filme vai assustar os jovens e afastar ainda mais os usuários de drogas injetáveis”, diz Sardá. Na região Sul, a infecção da maioria das mulheres se dá por meio de contato sexual com maridos usuários de drogas.
Pânico
Um segundo filme mostra uma menina: aos 7 anos sonha em ser artista, aos 12 anos quer ser veterinária, aos 15 quer trabalhar em cinema. Depois morreu de Aids. Na ONG Recanto do Carinho, de Florianópolis, uma menina de 12, com HIV, sonhava em ser veterinária. “Entrou em pânico ao ver o filme”, disse Sardá.
Anne Schmitz, do Grupo de Apoio às Pessoas com Aids de Criciúma (GAPAC, escreveu ao governo dizendo que crianças não queriam mais ir à escola com medo de que a mãe, com Aids, pudesse morrer.
“Nossa intenção é mesmo causar impacto, pois já temos uma geração que nasceu com acesso à informação e não se sente vulnerável”, diz Iraci Batista da Silva, coordenadora do programa de Aids de Santa Catarina.
“Temos 20 anos de epidemia e a Aids não caiu no Estado, mesmo com campanhas e a estrutura necessária. As mulheres são as maiores vítimas.”
A Coordenação Nacional de Aids está preparando uma carta ao governo catarinense em que informa que a prevenção pelo medo e pelo terror não muda comportamentos.
Em São Paulo, o Fórum de ONGs-Aids do Estado de São Paulo, reunido ontem, disse que enviará uma carta ao governo de Santa Catarina “apoiando os grupos locais e repudiando o retrocesso nas campanhas”.
“Mais uma vez, as campanhas remetem ao medo e à culpa”, diz Eduardo Barbosa, presidente do Fórum que ontem reuniu representantes de cem ONGs. “Aqueles que vivem com Aids/ HIV e aqueles que trabalham com a epidemia se sentem desrespeitados com a associação da Aids com a morte, sem nenhuma contribuição para a prevenção.”
Segundo Sandro Sardá, na segunda-feira o Ministério Público, ONGs catarinenses e o governo do Estado estarão reunidos. “Vamos pedir uma reparação coletiva, com outra campanha que informe corretamente que a Aids não significa a morte.”
Números
A campanha tem um viés terrorista, mas os números mostram que Santa Catarina tem razões para se preocupar. Das dez cidades com maior incidência de Aids, cinco estão no Estado.
Itajaí, a campeã, tem 93,5 casos notificados por 100 mil habitantes -sete vezes mais que a média nacional, que é de 12,8.
Entre 2001 e 2002, a incidência de Aids na região Sudeste caiu de 20,8 por 100 mil habitantes para 17,1. Na região Sul, a redução foi de 22,1 para 20,7.
A queda, menor no Sul, se deve ao aumento de casos entre as mulheres, infectadas por seus maridos. É nessa região, no entanto, que se concentram os casos da doença por uso de droga injetável, um dos grupos mais difíceis de serem acessados.